Na zona oeste do Rio de Janeiro, cercada pelas montanhas do Parque da Serra do Mendanha, a casa de muro verde-água de Anazir Maria de Oliveira, conhecida como Dona Zica, é ponto de referência em Vila Aliança. Com a porta sempre aberta, o local recebe o entra e sai de bisnetos e vizinhos, mas também de pessoas que buscam conselhos, apoio e inspiração. Aos 92 anos, Dona Zica é símbolo da luta das trabalhadoras domésticas no Brasil — e referência política, social e religiosa.
Coordenadora da Pastoral Afro-Brasileira da Arquidiocese do Rio de Janeiro, ela acredita no papel transformador das igrejas: “É preciso incentivar a juventude a lutar coletivamente. Nossas conquistas nunca foram fáceis”, afirma.
A trajetória de Zica começou no campo, em Manhumirim (MG), onde nasceu e iniciou o trabalho doméstico ainda aos nove anos de idade, recebendo como pagamento apenas promessas. Aos 11, chegou ao Rio com a mãe, em busca de uma vida melhor, após perder nove irmãos para a miséria. Em 2025, ela celebrou seu aniversário de 92 anos junto com os dez anos da Lei Complementar 150, que regulamentou os direitos das empregadas domésticas, como FGTS, seguro-desemprego e horas extras.

Mas sua luta é bem anterior à regulamentação. Na década de 1980, Dona Zica ajudou a fundar o Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do Rio de Janeiro, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Partido dos Trabalhadores (PT). Nos anos da Constituinte de 1988, ela fez viagens de ônibus ao Congresso Nacional para pressionar parlamentares por direitos básicos como férias e 13º salário. Na época, ouvia de deputados que domésticas não podiam ter folgas. “Respondemos que ele nunca mais teria o voto de uma empregada doméstica”, relembra.
Trabalho, fé e consciência política
Foi na Igreja Católica que Dona Zica iniciou sua organização política. Nos anos 1970, liderou grupos de domésticas em paróquias da zona oeste, promovendo encontros e rodas de conversa. Desses encontros, surgiu a força para exigir carteira assinada, compreender seus direitos e formar alianças. Mais tarde, passou a dialogar com movimentos feministas e sindicais, buscando apoio para as causas da categoria.
“Trabalhei 40 anos como lavadeira e passadeira. Voltei a estudar depois dos 40, me formei em pedagogia e serviço social aos 83 anos”, relata. A trajetória de luta inclui também a parceria com seu marido, Jair Benedito de Oliveira, que passou de cético a companheiro engajado na militância. “Ele dizia: essas mulheres não têm o que fazer? Depois, passou a me ajudar nos eventos e a cuidar da casa.”
Da informalidade à resistência
Zica também alerta para as dificuldades ainda enfrentadas pelas trabalhadoras domésticas. Segundo o IBGE, o Brasil tem 6 milhões de pessoas nessa ocupação — a maioria mulheres negras. Apenas 24,7% têm carteira assinada, e menos de um terço contribui com a previdência.
“A gente ainda vive uma herança da escravidão. Os patrões só pagam porque são obrigados. E, mesmo assim, as domésticas precisam correr atrás. O nosso trabalho ainda não é valorizado como deveria”, critica. Para ela, é urgente ampliar os direitos das diaristas, vítimas da informalidade, da baixa remuneração e da exclusão da proteção trabalhista.
Avanços e desafios
Ao lado de nomes como Benedita da Silva, Dona Zica se tornou símbolo de uma luta histórica. Reconhecida pela Câmara Municipal do Rio com a Medalha Chiquinha Gonzaga, ela é respeitada como memória viva do sindicalismo e dos movimentos sociais.
“Os direitos vieram parcelados. A PEC das Domésticas e a Lei 150 foram vitórias, mas não encerram a luta. Precisamos seguir. A juventude tem que voltar a se organizar. Só a sociedade mobilizada constrói o futuro”, defende.
Hoje, aos 92 anos, Dona Zica é uma gigante em um corpo pequeno, de fala serena e firmeza inabalável. De Manhumirim ao Congresso Nacional, passando pelas igrejas e pelas ruas de Vila Aliança, sua história é a própria história da resistência de milhões de mulheres brasileiras que, como ela, nunca deixaram de lutar.
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