Você já esteve num momento importante, mas depois teve a sensação de não lembrar direito do que aconteceu?
Não porque estava distraída com outra coisa, mas porque estava ocupada demais tentando registrar tudo com o celular?
Talvez esse seja o ponto: tentar guardar demais pode fazer a gente viver de menos.
Estamos vivendo a vida como se ela precisasse passar por uma tela para ser real. Um show, uma viagem, um jantar, o primeiro passinho do filho, um reencontro com quem amamos. Tudo é filmado, documentado, publicado — mas nem sempre vivido.
Atenção é o primeiro filtro da memória.
Se você não presta atenção de verdade, o cérebro não registra com profundidade. E quando a atenção está dividida — como acontece ao gravar algo com o celular — a chance de um momento ser realmente memorizado cai drasticamente.
Talvez por isso a gente saia de lugares incríveis com a sensação de não lembrar de nada.
A gente estava lá, mas não estava de fato lá.
E o mais irônico: muitas vezes, os vídeos que gravamos nunca mais são vistos. Viram arquivos esquecidos no rolo da câmera. Mas o impacto emocional que aquele momento poderia deixar — esse não volta mais.
Não se trata de demonizar o celular.
Registrar é natural, saudável, até necessário. Mas quando a maior parte da experiência é vivida através da tela, quem vive de verdade?
O mercado entendeu esse movimento. Vemos GoPros, capacetes com câmera, bastões articulados, capinhas à prova d’água… tudo para garantir que você registre enquanto vive. Ou melhor, que registre para parecer que vive.
A experiência precisa render conteúdo. Precisa ser bonita. Precisa ser mostrada.
E talvez o retrato mais claro disso tudo esteja nos shows.
O artista está no palco, mas o que se vê são milhares de celulares erguidos. Tem gente que grava tudo. Outros fazem live. Muitos se filmam cantando.
O foco não está mais na emoção que a música provoca, mas na imagem que aquilo vai render nas redes.
E aí vem a parte mais sutil — e mais cruel: até nos momentos de lazer, a gente está produzindo.
As pessoas dizem que estão esquecidas, que não conseguem prestar atenção, que talvez tenham TDAH.
Mas será que estão mesmo doentes?
Ou será que estão apenas sobrecarregadas de telas, roteiros e obrigações de mostrar?
Estudos mostram que a atenção sustentada é cada vez mais rara num cotidiano fragmentado por telas.
A nossa relação com o tempo foi corroída pela lógica do registro — e não da presença.
A mente não retém aquilo que não recebe atenção.
E o corpo não sente o que só atravessa pela lente.
Mesmo quando estamos nos divertindo, estamos mostrando.
Não é mais sobre estar ali — é sobre parecer que esteve.
E nesse ciclo, a presença real é a primeira a desaparecer.
Talvez por trás de tudo isso exista também um medo: o medo de perder o momento. De deixar passar. De esquecer.
A gente grava porque quer eternizar. Porque tem essa necessidade de tornar tudo permanente.
Mas, na pressa de guardar pra sempre, a gente nem sequer vive aquilo direito.
Queremos que seja um momento bom — então roteirizamos. Criamos um filme. Escolhemos o ângulo, a iluminação, a reação que vamos ter.
Só que o que deveria ser espontâneo vai sendo sufocado pela ideia de como aquilo deve parecer.
E no fim, sobra o vídeo.
Mas falta o impacto. Falta a lembrança. Falta o sentir.