Os dados mais recentes do Anuário Brasileiro de Segurança Pública escancaram a gravidade da violência contra mulheres no Brasil e revelam um paradoxo alarmante: enquanto os índices de feminicídio aumentam, o país possui uma das legislações mais avançadas do mundo para coibir a violência doméstica — a Lei Maria da Penha, que completa 19 anos nesta quinta-feira (7).
O grande desafio, segundo especialistas ouvidas pela Agência Brasil, é tirar a lei do papel. A efetividade da legislação depende da atuação coordenada entre poder público, segurança, justiça, assistência social e saúde. A ausência dessa integração tem comprometido a proteção das vítimas.
Crescimento dos feminicídios e falhas nas medidas protetivas
Atualmente, o Brasil registra, em média, quatro feminicídios por dia e mais de 10 tentativas de assassinato de mulheres, principalmente dentro do ambiente doméstico. Em 80% dos casos, o autor do crime era o companheiro ou ex-companheiro da vítima.
Dados inéditos do anuário mostram que pelo menos 121 mulheres foram assassinadas nos últimos dois anos mesmo estando sob medida protetiva de urgência — um dos principais instrumentos previstos na Lei Maria da Penha. Das 555 mil medidas concedidas em 2023, 101.656 foram descumpridas pelos agressores.
Medidas protetivas precisam de reforço
A pesquisadora Isabella Matosinhos, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, avalia que, embora as medidas protetivas sejam fundamentais, sua eficácia depende de fiscalização contínua e de uma rede de apoio eficiente. “A política pública precisa se concentrar nos casos em que a medida falha, porque é nesses momentos que vidas estão em risco”, pontua.
Ela ressalta que os números podem ser ainda maiores devido à subnotificação. Nem todos os estados fornecem dados completos sobre o descumprimento de medidas ou sobre mortes sob proteção judicial.
Sistema de proteção fragmentado
A professora Amanda Lagreca, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora do Anuário, reforça que a Lei Maria da Penha propõe um modelo de atendimento integrado, mas que, na prática, não funciona de forma eficiente. “As instituições precisam implementar a lei de forma coordenada, considerando a complexidade da realidade das mulheres brasileiras”, afirma.
As especialistas destacam ainda que, fora das capitais, a situação é mais crítica devido à falta de investimento em políticas públicas locais. “No interior, muitas mulheres sequer têm acesso a delegacias especializadas ou centros de acolhimento”, alerta Isabella.
Perfil das vítimas
Segundo o Anuário, 63,6% das vítimas de feminicídio no país são mulheres negras. A faixa etária predominante vai de 18 a 44 anos. A maioria é morta dentro de casa por parceiros ou ex-parceiros. “São mulheres jovens, negras, assassinadas por homens com quem tinham vínculo afetivo”, lamenta Isabella.
Educação como prevenção e mudança cultural
Além das medidas punitivas, a legislação também prevê ações educativas, como a participação dos agressores em grupos reflexivos. Mas Amanda Lagreca acredita que o país precisa avançar em políticas estruturantes e de prevenção. “É fundamental ocupar escolas e outros espaços educativos para ensinar que a violência contra a mulher é intolerável.”
Ela destaca que a Lei Maria da Penha é fruto da mobilização da sociedade civil e representa um marco no reconhecimento da violência contra a mulher como violação de direitos humanos. “É uma das leis mais respeitadas do mundo nesse tema, mas sua aplicação depende de vontade política e recursos públicos.”
Violência psicológica também é crime
Entre os avanços recentes da legislação está o reconhecimento da violência psicológica como forma de agressão. Ainda assim, o atendimento e o acolhimento às vítimas precisam ser fortalecidos para que não se restrinjam ao momento da denúncia, mas avancem para garantir segurança real.
Para onde recorrer
Para solicitar uma medida protetiva, é necessário apresentar um histórico de violência, o que reforça a importância da prevenção desde os primeiros sinais de agressão. As especialistas apontam que o combate à violência de gênero é um dos grandes desafios da democracia brasileira.
“A Lei Maria da Penha continua sendo uma ferramenta essencial. Mas, para proteger de fato as mulheres, é preciso garantir sua aplicação plena e efetiva”, conclui Amanda Lagreca.
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