“Imaginem um mundo sem samba, salsa, jazz, hip-hop ou funk. Será que ainda estaríamos aqui”. A provocação da coreógrafa e artista visual Ana Pi abre espaço para refletir sobre o papel essencial das expressões culturais negras na construção de identidades ao redor do mundo. É com esse pensamento que ela apresenta o espetáculo Atomic Joy (Alegria Atômica), que integra a programação da Temporada França-Brasil.
Com oito dançarinos em cena, a obra propõe uma leitura da alegria atravessada por guerras, ancestralidade e pelas pequenas vibrações do cotidiano. “Imagina se a gente tivesse decidido não dançar”, provoca Ana Pi, em entrevista a jornalistas.
Natural de Belo Horizonte e com raízes também em Salvador, Ana vive há 14 anos na França, onde consolidou uma carreira internacional que une coreografia, pedagogia, pesquisa e imagem. Em Paris, ela encontrou um cenário fértil para se aprofundar nas danças urbanas: “Paris é o centro da maior batalha de dança do mundo. Não é à toa que o breakdance virou disciplina olímpica”, destaca.
A artista mergulhou nas culturas das periferias urbanas e rurais da Europa, reforçando a dança como uma linguagem ancestral de conexão. Ao levar essas expressões ao palco, Ana questiona os limites entre arte formal e popular. “A arte está em cada esquina, em cada quebrada. As danças de rua também são feitas de batalhas — pessoais, coletivas e simbólicas.”
O título Atomic Joy carrega múltiplos significados. Para Ana, a alegria retratada não é idealizada, mas ambígua e tensa. “Quem faz maldade por aí também está alegre. Então dentro da alegria existe a palavra resistência.” Já o termo “atômica” se refere ao pequeno, ao frágil, às vibrações humildes e essenciais da vida.
Conexões afroatlânticas
A temporada também conta com a participação da artista franco-camaronense Beya Gille Gacha, que apresenta sua obra no projeto Oceano Negro. Nascida em Paris, filha de mãe camaronesa e pai francês, Gacha reencontrou sua ancestralidade por meio de uma residência artística na Bahia.
Durante o intercâmbio em Itaparica, promovido pelo Instituto Sacatar, viveu uma experiência transformadora. “Sonhei com dois continentes que se aproximavam e com Camarões no meio. Foi um chamado”, relata.
Esse reencontro a levou ao Porto de Bimbia, nos Camarões, ponto de partida de africanos escravizados rumo às Américas. Diante de um painel com os destinos dessas rotas, leu repetidamente a palavra “Brasil”. “Eu caí sentada”, relembra. A visita consolidou sua percepção dos profundos vínculos entre os dois países.
Gacha também chama atenção para a falta de memória histórica em ambos os lados do Atlântico. “Há uma violência nisso. Os descendentes dos deportados e os que ficaram não conhecem suas próprias histórias. Nos Camarões, não se sabe que houve envio de pessoas escravizadas.”
Através da dança, da escultura e da performance, tanto Ana Pi quanto Beya Gille Gacha reforçam que a arte negra é uma poderosa ferramenta de resistência, reconexão e reconstrução da memória. As obras Atomic Joy e Oceano Negro transformam a Temporada França-Brasil em um espaço de reflexão sobre identidade, diáspora e futuro.
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